quinta-feira, 20 de maio de 2010

Contra os “Frankensteins”: a Bioética

Prof. Dr. Marcelo Pelizzoli

Nas últimas décadas, as nossas cidades, o estilo de vida, o consumo e a forma de se relacionar com as coisas e a vida mudou dramaticamente. A tecnociência criou um fascínio por coisas novas que se podem usar e abusar. Veio uma avalanche de equipamentos, aditivos químicos (na alimentação: de 50 para 500, em 40 anos), celulares, eletrônicos, inseticidas, refrigerantes, pilhas, agrotóxicos, enlatados, carros, pneus (900 milhões por ano) peças de todo tipo, eletrodomésticos, coisas sem fim... Enquanto um indígena yanomami precisa de menos de 70 tipos de utensílios para toda sua vida, o homem urbano de elite pode chegar a 7.000 ! Ao lado disso, montanhas de LIXO, poluição, degradação ecológica, ataques à qualidade de vida etc.
Na área da Saúde e Ambiente, vemos as mudanças mais surpreendentes. Tínhamos a questão do aborto e da eutanásia, mas agora é muito mais: bebês de proveta (laboratório), bancos de sêmen de pais mortos, clonagem de animais, pesquisas com embriões e partes dos seres vivos; o ponto alto: manipulação genética – alterar o cerne biológico do corpo, o código genético de plantas e animais (incluindo o ser humano). Daí os ameaçadores transgênicos, tecnologia de cultivos que tem pouquíssimos donos no mundo, é cara e prejudica o pequeno agricultor (a economia dos países fracos) e os cultivos tradicionais/naturais, sem falar na saúde do consumidor.
Nos anos 60, filósofos, ativistas, ecologistas, e alguns cientistas começaram a denunciar os efeitos negativos da técnica unida com a ciência, que alimenta o modelo capitalista explorador e sua sociedade de consumo infinito, que degrada a vida humana e natural. Eles começaram a criar uma nova visão, sensibilidade e ação, uma contracultura. Defendem os direitos humanos, os direitos do paciente, dos animais, da natureza, dos pobres, das mulheres oprimidas, dos fracos, e pregam um modo de vida ético, ecológico e verdadeiramente humano. Neste contexto é que surgiu a BIOÉTICA, a ética da defesa da Vida, da essência humana, da saúde equilibrada, do modo de vida comedido e simples, dos movimentos alternativos, tudo isso contra os abusos dos “Frankensteins”. Este é um ser parte monstro parte homem, uma aberração/deformação criada por um cientista, numa experiência planejada mas inesperada. Hoje, médicos, químicos, pesquisadores, industriais, agentes de laboratório e até professores criam essas criaturas quando: nos envenenam com excesso de medicamentos, alimentos quimificados e industrializados, aditivos artificiais, inseticidas, descartáveis, pilhas, equipamentos de todo tipo, um monte de supérfluos, gastos de água e energia desmedidos, automóveis etc. E até a carne (a pecuária destrói as matas, o boi produz metano que é um dos gases do efeito estufa – aquecimento global – produz doenças como o câncer, cardíacas e muitas outras, ele toma o espaço de áreas que poderiam ter grãos e vegetais, o boi é tratado com crueldade, existem 190 milhões de bois no Brasil !).
A Bioética ficou mais conhecida na área da Saúde por lutar contra as experiências cruéis e fatais feitas com milhares de seres humanos com as pesquisas médicas, tal como se faz com ratos. Também pelo tratamento desumano de muitos médicos técnicos frios. Mas na origem do termo, criado por R. Potter, ela é a crítica da tecnociência em nome da ética, e a busca de um mundo que respeita a Vida acima de tudo, uma ética planetária. É um olhar, uma consciência, uma sensibilidade e depois uma Ação, por vezes barulhenta, outras silenciosa, que está tentando fazer a humanidade caminhar para o tempo ecológico, da defesa da natureza, dos direitos humanos, dos movimentos alternativos, medicina natural e agroecologia, por exemplo.
A Bioética, na Saúde, criou centenas de Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) nas universidades e centros de pesquisa, que procuram controlar as pesquisas com seres humanos para evitar abusos antiéticos. Porém, isso é um pequeno passo. O passo maior é quando nós, povo, vamos atrás das informações, e chegamos até a consciência crítica e a sensibilidade de ser tocado pela violência: a degradação social (riqueza X pobreza) e ambiental (consumo e capitalismo X equilíbrio e socialização), e então decidimos agir: boicotar o antiecológico e o consumo degradante e as corporações que só pensam no lucro, e optar conscientemente pelo simples, pelo menos, pelo orgânico, pelo ecológico, pela cidadania, pelo espiritual, enfim, pela Vida em todas as suas formas. Mas, até onde você consegue evitar os “frankensteins” e agir de modo (bio)ético ? Muito disso depende de você, pois estamos no período de transição do anti-ecológico para o olhar ou “paradigma ecológico”.
São apenas algumas questões bioéticas, que evocam não apenas os imensos desafios que nos esperam, mas revelam o atual espírito do tempo, de um prisma inadiável para a humanidade, postura de defesa socioambiental, um paradigma pautado mais na ética do que no lucro, uma verdadeira racionalidade BIO-ÉTICA.

A emergência da bioética: simbiose ou morte !

Prof. Dr. Marcelo Pelizzoli

Estar ciente das grandes mudanças histórico-culturais de nosso tempo é tarefa urgente da sociedade organizada. A mais importante tarefa social da ciência e das humanidades hoje são os desafios da Ética, o sentido de nossas ações, as novas possibilidades diante dos rumos ditos inevitáveis da sociedade de consumo no capitalismo. É devido às suas intervenções econômicas catastróficas e imprevisíveis enfrentadas hoje que a tradicional Moral dá lugar aos poucos à “bioética”, em vista dos dilemas socioambientais dantes impensáveis, como o efeito estufa (aquecimento global) e a crise da saúde das populações. Por que defender os seres não-humanos ? Por que deixar de intervir na essência humana, psicológica e biológica, genética, para transformá-la ? Por que não levar a manipulação atômica a todas as suas possibilidades ? Por que não desenvolver a indústria com todos os meios do progresso material ilimitado ? Não somos nós deuses na terra a ser dominada ? Por acaso a medicina tecnológica não irá curar todas as doenças ? São perguntas, hoje, obsoletas e ingênuas, além de perigosas, pois reveladoras de um tempo de crença positivista ou cega no progresso. Contudo, continuam a ecoar em discursos políticos e oficiais, pregando “crescer a todo custo”. Com altíssimo custo ! É aí que se avolumam os alertas éticos, ecológicos, dentro da Bioética. Por que a voracidade no consumo de tudo ? Estamos numa encruzilhada: ou criamos maior simbiose - união com as leis da Natureza - ou teremos sofrimento ainda maior da espécie humana.
O novo paradigma - padrão de olhar e valores - será agora a Bioética. Não apenas como mais uma moda. Ele evoca um movimento social e de consciência diante dos franksteins produzidos pela tecnociência, diante dos efeitos biológicos e psíquicos da tecnologia, diante das intervenções antrópicas fragmentárias, com grande efeito colateral, no ambiente complexo e de alta interdependência chamado de Natureza (natural, construída, corporal e inter-humana), diante da resposta da natureza tornada “praga”, doenças, efeito estufa, seca, contaminação, iatrogenia e uma gama de reações frutos da artificialidade rápida do “progresso” , em seus aspectos obscuros. Que novos efeitos esperar ?
A Bioética como novo paradigma, o da era ecológica, no sentido que já o mentor (Potter) do termo queria dar: “ética da Vida, união do homem com a ecosfera”, evoca o movimento do espírito de um tempo, que tem nas mãos o destino da geração atual e futura. Não se trata apenas de tom apocalíptico, mas de compreensão profunda do poder retido nas mãos de alguns senhores do destino apoiados por massas fascinadas. A economia de mercado pautada na noção de progresso material ilimitado e de intervenção humana sem pudores põe-se hoje como este fascínio, pregado como único modo civilizatório, como futurismo tecnocrático, onde todos, por fim, reencontrar-se-iam com seu sentido projetado dentro de um programa de computador que os guiam: a verdadeira Matrix disseminada, a nova mente mecânica que não precisa pensar, protestar ou sofrer por amor.
Por outro lado, surge a questão dos Direitos humanos, surge o habitar sustentável na Ética ambiental (“ecologia”), surge a afirmação do feminino e da mulher, quiçá outro modo de pensar o civilizar-acolher humano; surgem os movimentos alternativos, os movimentos sociais engajados, culturas locais, a arte contemporânea arrebenta os padrões positivistas, a psicanálise deflora o Desejo e o Inconsciente para além das identidades maquínicas, a humanidade começa a gritar: um outro mundo é possível! Sim, bioética como novo paradigma nada mais é do que o apontamento de um novo tempo, de reconhecimento de rumos tortos, interesseiros, dilapidação do ambiente natural e construído, de ameaça à essência humana pela via cultural, mas também pela via genética. Não é mais cabível tomar o ser humano por meio e mero uso em vez de fim e dignidade sagrada. Brincar de Deus tem produzido um apartheid social e ambiental sem precedentes, bem como impactos socioambientais sentidos por nós a cada dia, em nossa precária saúde, em nossa qualidade de vida. Ser humano é ousar sim, avançar, progredir, crescer; não obstante, para onde e para quê ? Para ser feliz... Tecnologia para ser feliz ? Pílulas da felicidade ? Comumente, quem é feliz vive com amor ou sabe amar, e lutar. Por conseguinte, progresso, verdadeiro, é amar, amizade, felicidade, solidariedade, usufruto da natureza equilibrada, alimentação adequada, vida sem estresse, ser humano respeitado, aceitação do outro, medicina promotora da saúde e não a indústria da doença, não a engenharia de órgãos nem a aplicação de técnicas fragmentárias.
Como nossas instituições sociais, mormente a Saúde e a urbanidade, têm priorizado tais fins humanos ? Que impacto tem em nossa consciência a precariedade dada nas doenças da pobreza, e mais, das grandes doenças causadas pela riqueza, ou acumulação dela ? Quais os direitos das gerações futuras ? Somos máquinas nas mãos de médicos-mecânicos ou seres afetivos-simbólicos culturais ? Somos passíveis de melhoramento genético ou é melhor investir mais no progresso humano-pessoal ? Somos controláveis por drogas ou quem sabe precisamos mais é ser amados e incluídos ? Nossos filhos podem ser cobaias? Alguém tem direito a nos fazer de cobaias para novas drogas e alimentos? Nossos fetos podem ter apenas função de produzir tecidos ou peças ? Devemos engolir transgênicos e aditivos “guela abaixo” ? Qual o impacto econômico, ambiental e social disso tudo ?

terça-feira, 27 de abril de 2010

Alerta Global !



A quem interessa alienar-se ?

Marcelo Pelizzoli1


Uma avestruz, quando tem medo, mete a cabeça sob a terra, e dá margem a ser devorada por predadores. O mundo ocidental, pós-Revolução Científica e Industrial, e o malfadado capitalismo (do eurocentrismo branco ao american way of life), tendo “vencido” o mundo primitivo, chamado de “selvagem” (como os “índios”), conquistando a Lua e parte da matéria e da energia, vê-se em processo autofágico (auto-devoramento). Tal processo emerge a cada dia de uma série causal complexa de degradações constantes, que se assomam num continuum que reverbera por muitos anos depois de ocorrida uma ação. A exemplo de um lixão, que mais tarde compromete toda uma região de lençóis freáticos, ou a exemplo de um consumo inconsciente com alimentação artificial e quimificada, que em alguns anos gera um câncer ou um a série de doenças degenerativas (há uma “epidemia” delas hoje).

Demoraram-se longos anos para que o establishment, a oficialidade do poder (Governos, G8, por exemplo) aceitasse, a duras penas, a verdade inconveniente de que estamos num caos crescente social e ambiental (uso a palavra socioambiental para indicar que é um só processo!). É claro que, daí para a prática, “são outros quinhentos”. O alerta começou a ser dado no início do século XX, tendo como marco especial nos anos 50 a ameaça atômica real, e depois os colapsos ecológicos espelhados nas crises energéticas, de recursos, lutas por territórios, água, migrações de populações inteiras por questões de carência de recursos, problemas graves de saneamento, mortalidade e insanidade, e qualidade de vida comprometida devido a condições de poluição em geral, alimentação precária e artificial, uso de inseticidas, agrotóxicos, e uma gama de outros elementos agregados que nos matam antes da hora. Tudo isso a demandar quantidades crescentes de energia e materiais (natureza). Estamos nos encaminhando para o auge desta crise. O estopim disso se chama Aquecimento Global. Entender isso apenas como aumento de temperatura do planeta é um reducionismo inaceitável, mais ainda por parte de pessoas esclarecidas. E entender Ecologia ou ambientalismo apenas como conservação natural, é outro reducionismo perverso.

A quem interessa fechar os olhos e desmentir o Aquecimento Global ? A quem interessa condenar ecologistas e taxar militantes como radicais (isso deveria ser elogio, radical: ir à raiz)? Tem sido uma das formas clássicas de quem se sente atingido, atacar no “modo (des)moralizante”, bastante sutil mas hipócrita (como quando Color de Mello disse que Lula tinha um aparelho de som caro e que ele não tinha). Neste sentido, já vi textos acusando Al Gore, autor do filme talvez o mais importante deste século (Verdade Inconveniente) de gastar 5 mil dólares na conta de luz por mês ! Mas a mentira tem pernas curtas.

Vejo somente algumas alternativas para responder à negação da amplitude da crise e, consequentemente, da defesa do status quo: Hipótese 1: alguém quer ir contra 800 cientistas renomados contatados pela painel da ONU sobre Mudanças Climáticas, e contra o que estamos sentindo na pele a cada dia (degradação socioecológica), e assim ganhar holofotes numa mídia sensacionalista. Alguns conseguem isso. Mas há mais. Hipótese 2: alguém com interesses escusos, servindo àqueles que vêem seus negócios afetados pela diminuição do consumo e pela consciência cidadã e planetária. Esse é um caso muito comum. Nos EUA, a indústria do Petróleo e as que demandam energias imensas, e de alto impacto em gases de efeito estufa, são exemplos. Muitas vezes, ONGs, cientistas, sindicatos, pastores, mídia, são comprados constantemente para mentir em nome de alguns Senhores.

Consideremos, por um minuto, que um indivíduo que nega o aquecimento global tenha razão? Pergunta-se: a quem serve o resultado desta “verdade conveniente” ? O que ele nega junto? Nós deveríamos parar de economizar cada vez mais energia elétrica ? Deveríamos, por causa da verdade dessa falação, andar sempre de carro e produzir mais poluição e problemas respiratórios e engarrafamento ? Deveríamos priorizar menos o transporte público ? Deveríamos parar de consumir cada vez mais, e continuar a poluir de todos os tipos nossos ambientes ? Deveríamos continuar a destruir os nossos ecossistemas? Deveríamos continuar com valores egocentrados num individualismo grosseiro que faz perder a noção de interdependência de todos os seres e do destino comum dos que vivem num planeta limitado ? Deveríamos abandonar o trabalho exemplar do Painel da ONU e de Al Gore e toda a consciência que estão trazendo aos povos ? Vejam o absurdo a que chega uma tal negação.

Ecologia. Alerta Global. Não se trata de uma brincadeira. Não podemos brincar com o futuro de nossos filhos, e o presente que já nos pesa. O vertiginoso aumento de temperatura nos últimos anos com a comprovação consecutiva e comparativa exaustiva da alteração do ciclo uso do carbono desde a sociedade industrial é gritante. É uma questão da mais alta responsabilidade e da coletividade. Não obstante, não podemos entender isso como simples aumento de temperatura por caprichos de eras climáticas de nosso planeta. Esqueçamos um pouco o aquecimento em si, olhemos para baixo e para os lados e um pouco adiante! Somente posso entender mais humanamente a negação dos aspectos graves da crise ecológica e social em que vivemos se ligo este fato com o medo e a dor das pessoas quanto a aceitar certas realidades. Isso seria mais humano e humilde. Dói profundamente saber que estamos num caminho com estilo de vida profundamente anti-social e anti-ecológico; os fatos arrasam. Ou seja, admitir que o nosso capitalismo (e nós todos o somos em maior ou menor grau), levou nossa loucura egóica a tal intensidade que gera retroações e quedas as quais queremos evitar. E então, se ouve as vezes dizer: “está tudo bem”, “está tudo bem”, são apenas detalhes e a tecnologia e a política liberal, o crescimento econômico “vão resolver isso”! Ninguém mais, de bom senso e sensibilidade, tem coragem de negar o quão fundo chegamos, gerando violências de todo tipo, perda de valores, degradação de culturas, exclusão social, relações de poder hipócritas e exploratórias, uma selvageria manifesta em especial no Hemisfério Sul do Planeta, mas também no Norte. Por que defender um modelo assim? American way of life. Superman. Até quando ? Por que negar nossa situação e vulnerabilidade? Por que querer ser Deus? Onde queremos levar nosso ego para que ele escape da minha responsabilidade cada vez maior e dos meus limites?

A injustiça clama aos céus, diz o texto sagrado. Em todo caso, não precisamos desanimar diante da situação. Ela nos clama pois não queremos uma vida arruinada, mas boa, evitando o sofrimento, buscando a felicidade, mesmo nas coisas simples da vida, na partilha, na socialização, na cultura. Alegria, amizade, culturas locais, cidadania, sim. Mas não podemos mais viver num mundo de “faz de conta”. Não estamos mais na Era da Abundância e no infantil “Alice no país das maravilhas”, e, certas “verdades” que herdamos de nossos pais, mesmo professores (com viseiras), ou até de coronéis, hoje coronéis empresários, estão quase todas obsoletas, e por isso se tornam altamente perigosas, pois mesmo sendo por vezes religiosas, morais, perpetuam a dilapidação a que é jogada a grande população, tanto quanto o que chamamos de natureza. Viva o progresso? Viva a cana e a monocultura ? A pecuária extensiva? O Petróleo? Viva a sociedade industrial crescente? Viva cada vez mais automóveis e a Economia dinossáurica? E qual o destino do ser humano a cada dia ? Doenças e epidemias, poluição, depressão, perda de sentido num mundo burguês que perdeu o controle sobre seus monstros ? É isso que queremos ?

A maneira de a natureza nos responder dá-se com avisos crescentes e arrepiantes: desordens climáticas potencializando efeitos de chuvas, secas, furacões, inversões térmicas inesperadas. Doenças novas ou doenças antigas que retornam. Vírus que se fortalecem com antibióticos e se potencializam. “Vaca louca”, gripe do frango, plantações que florescem antes da hora, aumento de “pragas” tanto animais quanto vegetais; doenças que campeiam o mundo pobre, mas também o rico. Lutar contra esse estado de coisas não quer dizer simplesmente voltar a um mundo romântico, ao passado e a algum paraíso que não existe mais, negando toda a tecnologia. E não é também ser apenas “do contra”, esquedista etc. Mas é, antes de tudo, uma síntese, para a qual muito temos a nos preparar – sustentabilidade - exigindo cada vez mais mudanças, desacomodamento, criatividade, tecnologias brandas, agricultura ecológica, familiar, distribuição de terras e política agrícola, cumprimento da legislação ambiental, economia solidária e ecológica, bioconstruções, fiscalizações de todo tipo, reestruturação de cidades sustentáveis e muito mais. A luta ecológica é muito mais do que romântica e verdista ou de um partido apenas, é a construção de um outro mundo possível, do que depende radicalmente a vida presente e principalmente futura.

Refletir em cima do Aquecimento global é compreender porquês, buscar mudar fatos como: de cada 4 pessoas, uma terá câncer (enquanto que na década de 50, era uma em cada 40 - ao mesmo tempo, passamos de 45 aditivos químicos na alimentação para mais de 2000 hoje !!!). È compreender que o uso de energia tem um custo muito maior do que o que pagamos; é internalizar externalidades, como no caso da carne. O consumo de carne é hoje um dos maiores vilões socioecológicos: destruição da Amazônia, da Mata Atlântica (onde vivemos), do solo, poluição intensa de rios, aumento de fome no mundo - pois a carne não é para os pobres, e toma o lugar dos grãos etc. Refletir em cima do Alerta Global é despertar para o Zeitgeist, para o aqui e agora.

Abrir os olhos ao aquecimento global, é promover a cidadania planetária, a esperança na humanidade, a vida das crianças, o respeito à vida não-humana, e a humildade – ou seja, o humus, respeito à terra, de onde todos viemos e para onde retornamos.

Neste sentido, finalizo com uma história sobre o surgimento do ser humano e o Cuidado. Diz a lenda narrada por Virgílio: "Um dia, quando Cuidado pensativamente atravessava um rio, ela resolveu apanhar um pouco de barro e começar a moldar um ser, que ao final apresentou forma humana. Enquanto olhava para sua obra e avaliava o que tinha feito, Júpiter (céus) se aproximou. Cuidado pediu então a ele, para dar o espírito da vida para aquele ser, no que Júpiter prontamente a atendeu. Cuidado, satisfeita, quis dar um nome àquele ser, mas Júpiter, orgulhoso, disse que o seu nome é que deveria ser dado a ele. Enquanto Cuidado e Júpiter discutiam, Terra surge e lembra que ela é quem deveria dar um nome àquele ser, já que ele tinha sido feito da matéria de seu próprio corpo - o barro. Finalmente, para resolver a questão, os três disputantes aceitaram Saturno como juiz. Saturno decidiu, em seu senso de justiça, que Júpiter, quem deu o espírito ao ser, receberia de volta sua alma depois da morte; Terra, como havia dado a própria substância para o corpo dele, o receberia de volta quando morresse. Mas, disse Saturno ainda, ‘já que Cuidado antecedeu a Júpiter e à Terra e lhe deu a forma humana, que ela lhe dê assistência: que o acompanhe, conserve sua vida e lhe dê o apoio enquanto ele viver. Quanto ao nome, ele será chamado Homo (o nome em latim para Homem), já que ele foi feito do humus da terra’"2.

1 Apresentador do Programa Realidades. Professor do Doutorado em Filosofia e do Mestrado em Gestão e Políticas Ambientais da UFPE. Autor das obras: A emergência do Paradigma ecológico (1999), Correntes da ética ambiental (2003), Bioética como novo paradigma (2007) pela Ed. Vozes.

2 Ver:"Care". In: Encyclopedia of Bioethics, 2nd. ed., New York, Simon & Schuster Macmillan, 1995, v. 5.


segunda-feira, 19 de abril de 2010

Ética Ambiental: que “bicho” é este ?
Prof. Dr. Marcelo Pelizzoli

Trata-se de um bicho de milhares de cabeças, que no entanto, muitos querem decapitar, apesar da sua grandeza e urgência. Do que se trata? De cuidar do verde e do lixo? Ou ainda, preservar a natureza intocada ? Ou as baleias, o macaco-prego e bichos em extinção? Estas coisas são partes menores do tema. As partes maiores aparecem entendendo que estamos falando da nossa vida cotidiana, das nossas relações - sociais, econômicas, culturais, afetivas, e isso é em primeiro lugar o ambiente. Ética vem de ethos, ou seja, “habitação/habitat”, com sentido geográfico, político e de valores pessoais. “Ambiente” é assim um sinônimo de ética, e indica o estado de coisas que produzimos continuamente em relação com a Vida – natural, artificial, humana, não-humana: com sentido muito amplo. Ambiente e habitação trazem a idéia de complexidade (uma teia com bilhões de fios entretecidos), de interdependência de fatores socioambientais, de ecossistema, de vida dinâmica em transformação e necessidade de equilíbrio aí dentro, como numa dança. Para que? Para que os seres todos vivam e morram dentro de uma ordem de trocas coerentes (e aí está também o amor !), numa vida apreciável para todos apesar de difícil. É a tendência natural e cultural para a expansão da vida, da biodiversidade e assim da consciência - que vai da matéria ao espírito.
Já quando este propósito é ferido, e não tem tempo hábil para concertar-se, curar-se, caímos nalgum tipo de violência. A violência é a falta de Paz. A Paz é socioambiental: é entre países, é comigo mesmo, com o vizinho, com os seres naturais, com a vida. É uma integração, inteireza e movimento. E quando se diz “ética ambiental”, é para lembrar um pouco mais da relação dos homens com os seres todos e com o ecossistema em (des)equilíbrio. Daí a palavra “sustentável”. Ética ambiental é levar uma vida sustentável. Como ? Criando consciência política, participando, criando melhores laços afetivos, aprendendo a amar a Vida; e claro, igualmente, não usar venenos, consumir menos, economizar energia e recursos como a água; evitar produtos industrializados o máximo possível e buscar os produtos orgânicos/ecológicos, usar papel reciclado; priorizar a medicina e a agricultura natural e alternativa, andar mais de bicicleta e a pé, conhecer os problemas ambientais básicos, que são sempre sociais.
Veja que entrar na ética ambiental é como que acordar para o tempo ecológico que estamos vivendo! Não há nada mais importante hoje do que criar uma consciência socioambiental, pois disso depende nosso presente e nosso futuro próximo. Alguns podem estar pensando: mas o que eu ganho com isso ? Atenção: “ambientar-se”, criar sustentabilidade, não é algo apenas para os seres não-humanos, mas é para mim mesmo, pois todo mundo precisa cair na real e encontrar um sentido feliz para “com-viver”, e estamos numa interdependência enorme uns com os outros. Ninguém quer viver num mundo insuportável. Ética ambiental é criar relações melhores, é criar ânimo (alma) em tempos desalmados; é criar laços de amizade e amor com os outros; é perceber a maravilha e grandiosidade, o mistério nas cores, sabores, texturas, sons, olhares humanos e não humanos. É a magia que se estende dos raios solares matutinos ao brilho noturno das estrelas e da Lua. É preciso saber olhar... É poder respirar a energia vital, comer, absorver a natureza e os afetos e recebê-los como dons, e então, doar, entregar, fazer a sua parte.
A vida é uma troca. O universo responde à nossa violência ou à nossa benção, mais cedo ou mais tarde. Em todo caso, “antes tarde do que nunca” para aprender a sustentar-se, ambientar-se, integrar-se; isso é ética para além de moral repressora. Aliás, a ética e o ambiente exigem grande coragem, pois é uma luta que vai além do egoísmo, que não nega a individualidade e o mistério de cada um, mas junto a isso faz a entrega de si à vida, talvez para além da morte. Afinal, medo da morte é medo da vida, medo da natureza, da nossa própria natureza/corpo. A ética ambiental é uma manifestação do amor humano corajoso que habita dentro de nós e que quando o despertamos, ele brilha nas cores da vida. Nós é que acinzentamos ou colorimos de beleza a nossa vida. A aquarela do ambiente está em suas mãos !